A
Bíblia Passada a Limpo
Descobertas recentes da arqueologia
indicam que a maior parte das escrituras sagradas não passam de lenda
por
Vinícius Romanini
Para a Revista SuperInteressante
Para a Revista SuperInteressante
A
disputa entre ciência e religião pela posse da verdade é antiga. No Ocidente,
começou no século XVI, quando Galileu defendeu a tese de que a Terra não era o
centro do Universo. Essa primeira batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou
Galileu a negar suas idéias para não ser queimado vivo. Mas o futuro dessa
disputa seria diferente: pouco a pouco, a religião perdeu a autoridade para
explicar o mundo. Quando, no século XIX, Darwin lançou sua teoria sobre a
evolução das espécies, contra a idéia da criação divina, o fosso entre ciência e
religião já era intransponível. Nas últimas décadas, a Bíblia passou a ser alvo
de ciências como a filologia (o estudo da língua e dos documentos escritos), a
arqueologia e a história. E o que os cientistas estão provando é que o livro
mais importante da história é, em sua maior parte, uma coleção de mitos, lendas
e propaganda religiosa.
Primeiro livro impresso por
Guttemberg, no século XV, e o mais vendido da história, a Bíblia reúne escritos
fundamentais para as três grandes religiões monoteístas - Judaísmo, Cristianismo
e Islamismo. Na verdade, a Bíblia é uma biblioteca de 73 livros escritos em
momentos históricos diferentes. O Velho Testamento, aceito como sagrado por
judeus, cristãos e muçulmanos, é composto de 46 livros que pretendem resumir a
história do povo hebreu desde o suposto chamamento de Abraão por Deus, que teria
ocorrido por volta de 1850 a.C., até a conquista da Palestina pelos exércitos de
Alexandre Magno e as revoltas do povo judeu contra o domínio grego, por volta de
300 a.C. Os 27 livros do Novo Testamento abarcam um período bem menor: cerca de
70 anos que vão do nascimento de Jesus à destruição de Jerusalém pelos romanos
em 70 d.C.
O
coração do Velho Testamento são os primeiros cinco livros, que compõem a Torá do
Judaísmo (a palavra significa "lei", em hebraico). Em grego, o conjunto desses
livros recebeu o nome de Pentateuco ("cinco livros"). São considerados os textos
"históricos" da Bíblia, porque pretendem contar o que ocorreu desde o início dos
tempos, inclusive a criação do homem - que, segundo alguns teólogos, teria
ocorrido em 5000 a.C. O Pentateuco inclui o Gênesis (o "livro das origens", que
narra a criação do mundo e do homem até o dilúvio universal), o Êxodo (que narra
a saída dos judeus do Egito sob a liderança de Moisés) e os Números (que contam
a longa travessia dos judeus pelo deserto até a chegada a Canaã, a terra
prometida).
Das
três ciências que estudam a Bíblia, a arqueologia tem se mostrado a mais
promissora. "Ela é a única que fornece dados novos", diz o arqueólogo israelense
Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel
Aviv e autor do livro The Bible Unearthed (A Bíblia desenterrada, inédito no
Brasil), publicado no ano passado. A obra causou um choque em estudiosos de
arqueologia bíblica, porque reduz os relatos do Antigo Testamento a uma coleção
de lendas inventadas a partir do século VII a.C.
O Gênesis, por exemplo, é visto como uma epopéia literária. O mesmo vale para as conquistas de David e as descrições do império de Salomão.
O Gênesis, por exemplo, é visto como uma epopéia literária. O mesmo vale para as conquistas de David e as descrições do império de Salomão.
A
ciência também analisa os textos do Novo Testamento, embora o campo de batalha
aqui esteja muito mais na filologia. A arqueologia, nesse caso, serve mais para
compor um cenário para os fatos do que para resolver contendas entre as várias
teorias. O núcleo central do Novo Testamento são os quatro evangelhos. A palavra
evangelho significa "boa nova" e a intenção desses textos é clara: propagandear
o Cristianismo. Três deles (Mateus, Marcos e Lucas) são chamados sinóticos, o
que pode ser traduzido como "com o mesmo ponto de vista". Eles contam a mesma
história, o que seria uma prova de que os fatos realmente aconteceram. Não é tão
simples. O problema central do Novo Testamento é que seus textos não foram
escritos pelos evangelistas em pessoa, como muita gente supõe, mas por seus
seguidores, entre os anos 60 e 70, décadas depois da morte de Jesus, quando as
versões estavam contaminadas pela fé e por disputas religiosas.
Nessa
época, os cristãos estavam sendo perseguidos e mortos pelos romanos, e alguns
dos primeiros apóstolos, depois de se separarem para levar a "boa nova" ao resto
do mundo, estavam velhos e doentes. Havia, portanto, o perigo de que a mensagem
cristã caísse no esquecimento se não fosse colocada no papel. Marcos foi o
primeiro a fazer isso, e seus textos serviram de base para os relatos de Mateus
e Lucas, que aproveitaram para tirar do texto anterior algumas situações que
lhes pareceram heresias. "Em Marcos, Jesus é uma figura estranha que precisa
fazer rituais de magia para conseguir um milagre", afirma o historiador e
arqueólogo André Chevitarese.
Para
tentar enxergar o personagem histórico de Jesus através das camadas de traduções
e das inúmeras deturpações aplicadas ao Novo Testamento, os pesquisadores
voltaram-se para os textos que a Igreja repudiou nos primeiros séculos do
Cristianismo. Ignorados, alguns desapareceram. Mas os fragmentos que nos
chegaram tiveram menos intervenções da Igreja ao longo desses 2 000 anos. Parte
desses evangelhos, chamados "apócrifos" (não se sabe ao certo quem os escreveu),
fazem parte de uma biblioteca cristã do século IV descoberta em 1945 em cavernas
do Egito. Os evangelhos estavam escritos em língua copta (povo do Egito).
O
fato de esses textos terem sido comprovadamente escritos nos primeiros séculos
da era cristã não quer dizer que eles sejam mais autênticos ou contenham mais
verdades que os relatos que chegaram até nós como oficiais. Pelo contrário, até.
Os coptas, que fundariam a Igreja cristã etíope, foram considerados hereges,
porque não aceitavam a dupla natureza de Jesus (humana e divina). Para eles,
Jesus era apenas divino e os textos apócrifos coptas defendem essa versão. Mesmo
assim, eles trazem pistas para elucidar os fatos históricos.
A
tentativa de entender o Jesus histórico buscando relacioná-lo a uma ou outra
corrente religiosa judaica também foi infrutífera, como ficou demonstrado no
final da tradução dos pergaminhos do Mar Morto, anunciada recentemente. Esses
papéis, achados por acaso em cavernas próximas do Mar Morto, em 1947, criaram a
expectativa de que pudesse haver uma ligação entre Jesus e os essênios, uma
corrente religiosa asceta, cujos adeptos viviam isolados em comunidades
purificando-se à espera do messias. O fim das traduções indica que não há
qualquer ligação direta entre Jesus e os essênios, a não ser a revolta comum
contra a dominação romana.
O
resultado é que, depois de dois milênios, parece impossível separar o verdadeiro
do falso no Novo Testamento. O pesquisador Paul Johnson, autor de A História do
Cristianismo, afirma que, se extrairmos, de tudo o que já se escreveu sobre
Jesus, só o que tem coerência histórica e é consenso, restará um acontecimento
quase desprovido de significado. "Esse 'Jesus residual' contava histórias,
emitiu uma série de ditos sábios, foi executado em circunstâncias pouco claras e
passou a ser, depois, celebrado em cerimônia por seus seguidores."
O que
sabemos com certeza é que Jesus foi um judeu sectário, um agitador político que
ameaçava levantar os dois milhões de judeus da Palestina contra o exército de
ocupação romano. Tudo o mais que se diz dele precisa da fé para ser tomado como
verdade. Assim como aconteceu com Moisés, David e Salomão do Velho Testamento, a
figura de Jesus sumiu na névoa religiosa.
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